“Se Deus não me levou agora é porque está a chamar-me de novo para o mar, e não quero sair dele desta forma triste.” O relato é de António da Conceição, armador e mestre do pesqueiro naufragado na madrugada de anteontem, havendo a lamentar a morte de um tripulante.
O armador e mestre da embarcação setubalense “Pérola do Bom Sucesso”, com o registo de matricula S-1800-C, afundada na madrugada de anteontem, entre Sesimbra e o Cabo Espichel, ainda não consegue perceber bem esta tragédia.
O barco, da arte de rede de emalhar e com 10 metros de comprimento, navegava de Cascais para Setúbal quando, pelas 5 horas da madrugada de anteontem, logo após dobrar o Cabo Espichel, embateu numa pedra submersa - de seu nome Arcanzil - a escassos 50 metros de distância de terra.
“Já passei por ali centenas de vezes, conheço bem a rocha, e até vinha o meu camarada Fernando à proa. Não vimos nada. Pensei que já tinha passado a pedra, mas foi fatal”, revelou a «O Setubalense» António Padinha da Conceição.
Dois ou três minutos. É este o tempo estimado pelo mestre para o afundamento do seu barco. “Só tive tempo de pedir socorro, via VHF, e mandei o meu camarada Fernando, que vinha de vigia, activar a balsa de salvamento, que está por cima da ponta de leme, mas a balsa não abriu na altura, nem com o afundamento do barco,” lamentou o mestre.
“Pensei que não resistia! Agarrámo-nos a uma bóia de salvação, mas esta partiu-se e cada qual ficou com uma parte de esferovite. Estava um vento fresco de suoeste que nos empurrou para as rochas, sós no meio da escuridão. Ainda tive força para me despir dentro de água,” revelou, emocionado António “Aveiro”, como é popularmente conhecido.
A descansar no beliche, à proa do barco, estava João Silva de Oliveira, de 63 anos de idade. Face ao rápido afundamento, este pescador não teve tempo de reacção, como testemunhou o mestre que, entretanto, já lutava pela vida à tona de água com o outro camarada, agarrados a uma única bóia de salvação: “Ainda tenho os gritos dele nos meus ouvidos, mas infelizmente não lhe podíamos valer”, desabafa.
Sobre o futuro, este pescador de 73 anos de idade, que ontem de manhã prestou depoimentos na Polícia Marítima de Setúbal, no inquérito aberto para o sinistro, lamentou a morte do seu camarada João Oliveira, mas sempre admite voltar ao mar: “Sinto-me com vontade, saúde e força para continuar a andar ao mar. Não quero despedir-me desta maneira triste”, esperando uma reparação do seu barco.
O corpo do malogrado pescador, residente na Cova da Canastra, deverá ser hoje autopsiado no Hospital Garcia de Orta, em Almada, hipótese que, a confirmar-se, seguirá em cortejo fúnebre para o cemitério de Setúbal. O outro sobrevivente, Fernando Carlos Silva Oliveira, de 41 anos, é sobrinho do camarada falecido.
A «O Setubalense» o capitão do porto de Setúbal disse que, depois de ter recebido a comunicação de socorro pelas 5.20 h, “accionei a lancha marítima de Setúbal, a lancha do Instituto de Socorros a Náufragos (ISN de Sesimbra), e Corveta António Énes, e ainda um meio aéreo (héli Merlin, do Montijo)”.
Entretanto, pelas 6 horas, o pesqueiro “Nosso Ideal”, ao passar pela zona acabou por resgatar em primeira instância os dois náufragos, em estado algo crítico, transportados para o porto sesimbrense pelo barco do ISN. Cerca de duas horas mais tarde (7.40 h.) os mergulhadores da Armada a bordo da corveta António Énes mergulharam a seis metros de profundidade, de onde retiraram o corpo de João Silva do interior do beliche, onde ficou preso.
ARCANZIL A pedra de Arcanzil é conhecida por “maldita” entre a comunidade piscatória setubalense. Já atraiçoou outras embarcações, algumas das quais setubalenses. Esta pedra, que só descobre na baixa-mar de marés vivas, dista cerca de 50 metros da falésia rochosa, mais próximo do Cabo Espichel que de Sesimbra. Face a esta sucessão de acidentes, a comunidade piscatória reclama que a dita pedra seja devidamente sinalizada. A Capitania do Porto defende que a pedra “está bem referenciada” na carta marítima e que, ao longo daquela falésia, “existem muitas outras pedras, igualmente sem sinalização e bem referenciadas.”
Teodoro João
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